O poder-dever da Administração de rever seus atos eivados de vícios e o controle do mérito do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário:
Na lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (in Direito Administrativo, 14ª Ed. 2002, pág. 188) ato administrativo é: “declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário”.
Essa declaração do Estado, enquanto submetida às regras gerais do Direito Administrativo, é composta por alguns elementos básicos e/ou essenciais constitutivos. Em que pese existam divergências doutrinárias quanto aos quantitativos e nomenclaturas desses elementos básicos, com supedâneo no artigo 2º da Lei nº 4.717/65, é possível adotar cinco componentes dos atos administrativos. São eles: competência, forma, objeto, motivo e finalidade.
Ademais, nos termos do artigo supramencionado, havendo vício em algum desses elementos, há que se reconhecer a nulidade do ato administrativo.
No mesmo sentido é a dicção das súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, vejamos:
Súmula nº 346 “a Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos”.
Súmula nº 473 “a Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.
O mesmo se aplica à decisão administrativa de um processo sancionatório, porquanto, sendo um ato administrativo, além de se sujeitar às regras específicas da lei 8.666/93, submete-se também às regras gerais de Direito Administrativo.
O artigo 87 da Lei nº 8.666/93 dispõe quais são as possíveis penalidades que poderão ser aplicadas pela Administração Pública, vejamos:
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I—advertência;
II— multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
III— suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV — declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Observa-se que a Lei Geral de Licitações não define qual sanção deverá ser aplicada para cada conduta inadimplente do contratado, ficando a critério da Administração Pública a aplicação no caso concreto, valendo-se, assim, do seu poder discricionário.
No entanto, apesar do poder discricionário conferido à Administração Pública para, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decidir qual das penalidades supra referidas aplicará diante de um inadimplemento contratual, tal prerrogativa não autoriza a aplicação de penalidades de forma arbitrária, isto é, sem observar os princípios constitucionais estabelecidos no artigo 5º e no caput do artigo 37, bem como os princípios administrativos que regem as licitações e os contratos administrativos.
Neste mesmo sentido:
“(…) O ar. 87 da Lei 8.666/93, não estabelece critérios claros e objetivos acerca das sanções decorrentes do descumprimento do contrato, mais por óbvio existe uma gradação acerca das penalidades previstas nos quatro incisos do dispositivo legal. (…) 4. Assim deve ser analisada a questão referente à possível penalidade aplicada ao contrato pela Administração Pública e desse modo o art.87, da Lei nº 8.666/93, somente pode ser interpretado com base na razoabilidade, adotando, entre outros critérios, a própria gravidade do descumprimento do contrato, a noção de adimplemento substancial, e a proporcionalidade” – (STJ, Resp nº 914.087, Rel.Min. José Delgado, DJ de 04.10.2007).
E, tão importante quanto, não se pode invocar a discricionariedade ou a separação de poderes para afastar a possibilidade de o Poder Judiciário rever o ato sancionador.
Nesse sentido, há tempos que se entende que há a possibilidade do controle do mérito do ato administrativo discricionário; controle esse, exercido fundamentalmente pelo Poder Judiciário e órgãos de controle, trata-se, pois, da aplicação do ativismo judicial.
Nesse sentido:
ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO. Ao longo de vários anos, a jurisprudência havia firmado o entendimento de que os atos discricionários eram insusceptíveis de apreciação e controle pelo Poder Judiciário. Tratava-se de aceitar a intangibilidade do mérito do ato administrativo, em que se afirmava, pelo fato de ser a discricionariedade competência tipicamente administrativa, que o controle jurisdicional implicaria ofensa ao princípio da Separação dos Poderes. Não obstante, a necessidade de motivação e controle de todos os atos administrativos, de forma indiscriminada, principalmente, os em que a Administração dispõe da faculdade de avaliação de critérios de conveniência e oportunidade para praticá-los, isto é, os atos classificados como discricionários, é matéria que se encontra, atualmente, pacificada pela imensa maioria da doutrina e, fortuitamente, aos poucos acolhida na jurisprudência de maior vanguarda. O controle dos atos administrativos, mormente os discricionários, onde a Administração dispõe de certa margem de liberdade para praticá-los, é obrigação cujo cumprimento não pode se abster o Judiciário, sob a alegação de respeito ao princípio da Separação dos Poderes, sob pena de denegação da prestação jurisdicional devida ao jurisdicionado. Como cediço, a separação das funções estatais, prevista, inicialmente, por Rousseau e aprimorada por Montesquieu, desde que se concebeu o sistema de freios e contrapesos, no Estado Democrático de Direito, tem se entendido como uma operação dinâmica e concertada. Explico: As funções estatais, Executivo, Legislativo e Judiciário não podem ser concebidas de forma estanque. São independentes, sim, mas, até o limite em que a Constituição Federal impõe o controle de uma sobre as outras, de modo que o poder estatal, que, de fato, é uno, funcione em permanente auto-controle, fiscalização e equilíbrio. Assim, quando o Judiciário exerce o controle a posteriori de determinado ato administrativo não se pode olvidar que é o Estado controlando o próprio Estado. Não se pode, ao menos, alegar que a competência jurisdicional de controle dos atos administrativos incide, tão somente, sobre a legalidade, ou melhor, sobre a conformidade destes com a lei, pois, como se sabe, discricionariedade não é liberdade plena, mas, sim, liberdade de ação para a Administração Pública, dentro dos limites previstos em lei, pelo legislador. E é a própria lei que impõe ao administrador público o dever de motivação. (art. 13, § 2º, da Constituição do Estado de Minas Gerais, e art. 2º, VII, Lei nº 9.784/99) – grifamos. (STJ, SEGUNDA TURMA, REsp 429570 / GO; Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 22.03.2004 p. 277 RSTJ vol. 187 p. 219) – grifamos.
Portanto, é imperiosa a observância dos elementos do ato administrativo pela Administração Pública quando proferir qualquer decisão, por exemplo, em um processo sancionatório.
E, repisa-se, caso o ato administrativo sancionador tenha sido praticado em inobservância dos princípios ínsitos à Administração Pública deverá ser revisto administrativamente, ou mesmo ter sua nulidade declarada pelos órgãos de controle externo, em especial o Poder Judiciário.
Nesse sentido, confira-se ementa de recente julgado do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ: “MANDADO DE SEGURANÇA – LICITAÇÃO E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS – APLICAÇÃO DA PENALIDADE DE SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE PARTICIPAR EM LICITAÇÕES E IMPEDIMENTO DE CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PELO PRAZO DE 02 (DOIS) ANOS POR IRREGULARIDADES NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – LACUNA CONTRATUAL INTERPRETADA DE FORMA PREJUDICIAL À IMPETRANTE – CONTROLE AMPLO DE LEGALIDADE PELO PODER JUDICIÁRIO – DESPROPORCIONALIDADE DA SANÇÃO IMPOSTA – SEGURANÇA CONCEDIDA.” – grifo nosso – (TJPR – Órgão Especial – MSOE – 1294807-7 – Curitiba – Rel.: D’artagnan Serpa Sa – Unânime – – J. 07.03.2016).